JORGE VARGAS

JORGE VARGAS
O Cantador de Histórias!

terça-feira, 23 de maio de 2017

O CANTADOR DE HISTÓRIAS! by Luiz Gonzaga Lopes

 
                                                                         Jorge Vargas
Por Luiz Gonzaga Lopes, jornalista cultural, escritor, editor de Cultura do jornal Correio do Povo
O disco O Cantador de Histórias!, o primeiro solo de Jorge Vargas, é realmente um mergulho no tempo e nas sonoridades de tramas das guerras entre o exército norte-americano e de índios heróis como Crazy Horse, o mesmo traduzido Cavalo Doido da banda do músico há 20 anos. A batalha de Little Bighorn datada de junho de 1876 (há 240 anos) entre as tropas do General Custer e dos índios Sioux, liderados por Sitting Bull e Crazy Horse , entrou na cabeça de Jorge Vargas por acaso e outros tantos confrontos dos oprimidos com os opressores. Acabou virando uma boa obsessão.
Mas vamos ao disco que foi concebido e trabalhado durante um ano e meio na Tec Audio, de Marcelo Corsetti, e lançado devagarinho no final de maio e início de junho. São 11 faixas com uma intensidade arrebatadora, uma sonoridade trabalhada com esmero de artesão, passando pelo folk, blues, baladas e um pouco de pop, por que não? Fora estas qualidades todas, o time de músicos convidados por Vargas teve a precisão de uma flecha no alvo ou no inimigo branco (para usar uma metáfora indígena).

A primeira faixa tem a dupla Eduardo Gambona (guitarra slide) e Pedro Motta (hammond) nos acordando para o mundo da batalha em Little Big Horn. "Custer x Crazy Horse" é o despertar significativo de Jorge Vargas cantando "Venha Crazy Horse", chamando para a briga, pela luta contra a dizimação, o expropriar, a opressão. Mesmo encurralado, o Gen. Custer vai querer matá-lo. É uma morte quase metafórica, se transpormos estes quase dois séculos e meio, ainda mais com os riffs e solos de Gambona e a cozinha de Motta, Igor Conrad (contrabaixo) e Cristiano Lessa (bateria).
A melhor música do disco (grifo meu) é "Língua do Mal". Não por ser uma balada e ter a interpretação de Bebeto Alves, com seu jeito milonga, folk, quase brega, mas por toda a emocional carga envolvida. É quase uma sinfonia. Jorge me disse que tem várias preferidas do CD. Esta é uma delas.  O refrão com o violino de Júlia Reis rasgando a nossa alma é coisa para nunca mais esquecer: "Rios escuros já foram transparentes / Peixes flutuam de cabeça prá baixo / E construíram as cidades / Sobre os cemitérios dos nossos ancestrais". Ancestralidade indígena. Se fecharmos os olhos veremos o grande Cavalo Doido e a batalha que ele ganhou. Uma coisa maluca, transcendente, da cabeça do gênio Jorge Vargas.
Por falar em músicas preferidas, a terceira faixa "Pequeno Grande Chifre" é outra delas para Jorge Vargas. O coro de Vargas e Oly Jr., com sua viola 10 cordas, segue a linhagem das músicas do interior, do country ao bluegrass para falar do índio no confronto com o soldado. Apesar de tudo o indio entende que o soldado vai dormir em paz.
A quarta faixa é Lua Boa. "Que lua boa / prá gente se encontrar / que lua boa / prá gente namorar". O duo vocal é Jorge Vargas com Zé Caradípia, com um arranjo maravilhoso, aquela melancolia dos campos, com o piano de Leo Ferlauto, o deslizar do violino de Julia Reis e a batida segura de Cristiano Lessa fazendo o tapete musical no qual a lua reflete.

O Acampamento é uma faixa operística, conta uma história de tentativa de dominação pelo general de cabelos longos com sua cavalaria que está com sede de sangue: “A Cavalaria tinha sede de sangue / e nós lhe devolvemos o seu sangue / sujando os seus casacos com sangue da liberdade”. A harmônica de Vargas empresta uma alma de Bob Dylan ao gran finale da música. 
Palavras Assanhadas e Os Marcianos Levaram Você falam de amor. A primeira é mais baladinha e também faz um diálogo folk entre a harmônica de Vargas, o violino de Júlia Reis, o hammond de Sérgio Gomes e os vocais de Zé Caradípia. A segunda é mais embalada. Parece o encontro de Jorge Vargas com a alma rebelde de Raul Seixas e Júpiter Maçã. Na levada de Cristiano Lessa, Vargas puxa o surreal de “Os marcianos invadiram minha janela e levaram você”. O perfeito demais que some de uma hora para outra. Destaque para o violino de Júlia Reis e aquele clima de interior um saloon qualquer no interior americano. 
Algumas faixas são romantismo puro. O que falar então de Ana Luiza, cujo instrumental (piano e hammond do maestro Maurício Novaes) e modo de conduzir a música estão na linhagem de Neil Young em todos os arranjos e inclusive com uma levada que lembra Down by The River. "Ana Luiza e seus pensamentos, eu quero viajar na sua fantasia, rios e montanhas, sol e o luar, me fazem acreditar". A guitarra solo de Veco Marques nos faz viajar por este cenário descrito por Vargas e à maneira de um Eagles ou de um Cream ou do próprio Young nos faz viajar por um outro mundo, o de Ana Luiza e o do amor infantil incondicional.

Doce Gole é uma música quase pop, tem uma pegada meio soul, meio rock, para degustar o doce gole da paixão. O companheiro de Cavalo Doido Sérgio Gomes faz uma cama de teclados meio progressiva, meio Yes, enfim tem a harmônica de Jorge Vargas dialogando com a guitarra solo de Veco Marques e com a slide de Gambona e o contrabaixo preciso de Paulo Freitas. Uma música que arrepia. Me lembrou um Led Zeppelin ou Bob Dylan. Putz, quanta referência numa canção só. Falei que o disco tem uma faixa melhor do que a outra.


Neil Young, o músico-guru que permeia a carreira de Vargas e dos amigos da Cavalo Doido, está presente em algumas faixas como referência, mas está inteiro na décima música do CD: "Quando Ouvi o Neil": "A primeira vez que eu ouvi o Neil / O mar se abriu como prá Moisés / Fiquei maluco como um furacão (Like a Hurricane)/ Com os versos de MY MY HEY HEY". O start da música é envolvente como uma cachoeira de sons. A Les Paul de Jorge Vargas, os backing vocals de Telmo Martins, a guitarra slide de Eduardo Gambona e o hammond de Pedro Mota acabam nos Neilyounguizando pela história do cara que se hipnotizou com o músico canadense e deixou a viola do Hallai Hallai e sua alma na curva do rio. O final da música é emoção pura, adornado pelo piano de Pedro Motta. 
Mais orquestrada pelo piano de Leo Ferlauto e o violino de Júlia Reis, a balada Todos os Dias (composta em parceria com Carlos Schmidt) é uma ode de quem quer uma pessoa sempre: "E por mais que seja estranho, ainda penso em vocês todos os dias". Que balada de uma alma que ama.
Enfim, um disco para ser ouvido repetida e randomicamente, sem parar. Será um dos cinco principais lançamentos do ano, com certeza. Senão, não levaria quase três décadas de estrada para este amadurecimento.
                                             Luiz Gonzaga Lopes